Grave o seu nome, seu traço e reconheça a sua cor preferida. Num instante seguinte, mude de cor e de traço; se quiser, mude até a forma como desenha o seu nome. Descubra a liberdade de se transformar e de fazer a sua própria história”.

Helio Rodrigues


quarta-feira, 24 de agosto de 2016

ENTRE A VERDADEIRA OPINIÃO E O PRECONCEITO

Nos passeios culturais que promovemos com as crianças e jovens do projeto Eu Sou, há uma recorrência que nos primeiros anos me causava certo estranhamento. Quando pedíamos autorizações aos pais para que seus filhos pudessem participar desses passeios, alguns não permitiam, mas não alegavam o motivo.
Apesar do meu constante esforço, confesso que infelizmente o ranço assistencialista com alguma arrogância surgia em mim na forma de um pensamento:
“Como pode, estamos oferecendo uma oportunidade ímpar e alguns não aceitam?“
Acabei perguntando aos pais e obtive, de todos, respostas semelhantes:
- Acho perigoso quando meu filho sai da comunidade.
Diante disso eu tinha dois caminhos, me agarrar em alguma ironia preconceituosa ou refletir. Optei pela segunda e me veio ao pensamento que, apesar da indiscutível insegurança e a rotina de desrespeito que vivem os moradores das favelas, circular fora delas é viver outra forma de desrespeito: a discriminação.  
Quem já sofreu sabe que o preconceito é uma arma destruidora de identidades. De uma forma mais branda, pode-se dizer que, fora dos limites da favela, seus moradores experimentam uma espécie de “bullying” social. Por isso, mesmo em meio ao fogo cruzado dos tiroteios e até a insegurança de ter a própria casa invadida por policiais ou bandidos, é comum acreditarem que dentro da comunidade em que vivem, suas identidades ainda podem ser minimamente  preservadas.
O objetivo do Projeto Eu Sou é justamente promover o fortalecimento dessas identidades para que as defesas dessas pessoas não sejam os limites físicos da favela, mas sim o autorreconhecimento e a potência que a arte ajuda a descobrir.
Todos nós, da favela ou do asfalto, precisamos dessa relação mais sólida com nós mesmos e assim, desapegados da frágil, porém arrogante defesa que os preconceitos oferecem possamos verdadeiramente desenvolver nossas opiniões e colaborarmos para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa, menos restrita e mais comum a todos.
Nesse sentido, temos conseguido com o projeto dentro de comunidades, importantes resultados, mas fora delas, no chamado asfalto, os preconceitos são também responsáveis pela restrição das fronteiras estabelecidas por seus moradores.
A instalação artística: “No espaço entre nós”, propõe a reflexão sobre essa questão com uma pergunta:
O que pode fazer a arte com esse espaço vazio existente entre nós?
Jovens dos dois lados dessa sociedade partida responderam apenas com arte e com maestria.


quinta-feira, 21 de abril de 2016

QUE A ARTE FALE O CONTRÁRIO

Os dias têm sido muito difíceis na favela do Jacarezinho e em todo o seu entorno, um local onde o projeto Eu Sou já criou raízes. Afinal, faz 10 anos.
Nesses dias de UPP, a violência parece se confirmar ainda mais banal; mas isso apenas para quem mora longe. Na verdade assustador para quem mora dentro da comunidade e que, entre outras coisas, precisa sair para trabalhar e é obrigado a deixar seus filhos seguros apenas pela fé num "que Deus os proteja".
Uma ação simples como ir à padaria tem hora e momento...e pode ser que nem tenha.
Os confrontos entre policiais e bandidos são assim mesmo, frequentes, e nesse ambiente as vidas só perdem valor. Quem estiver na linha de tiro leva a tal bala que dizem que é perdida.
Dentro do projeto, nosso trabalho é permitir que a arte fale o contrário que o cotidiano insiste em afirmar. Queremos que os nossos alunos vejam e escutem a própria arte. Que eles reúnam seus cacos de desvalia e se reconstruam. Que eles se olhem e se confirmem visíveis. Que eles se fortaleçam para poderem desejar algo que transcenda as paredes perfuradas de tiros de suas casas ou que transcendam o falso modelo de "sucesso" dos bandidos e suas armas douradas na cintura. Que possam ir além dos olhares de desdém de muitos policiais, como se ali só existissem seres indignos.
Nossa equipe de professores vem de vários pontos, empenhados em resgatar a sensibilidade das crianças, dos jovens e dos adultos da favela já tão anestesiados pelo medo e tão amargurados pelo desrespeito. 

Vem professor, da zona sul, norte, oeste e da própria comunidade, todos com muito medo. Nossos alunos chegam esbaforidos, com cara de "ufa, consegui!!!", como se dissessem: atravessei o "front"!
Todo o esforço dessas crianças e jovens para chegar nessa ilha de arte e paz merece encontrar por lá a dedicação dos  professores. Posso afirmar que o esforço e a coragem é geral.

domingo, 24 de maio de 2015

A VIOLÊNCIA NÃO CABE NESSE UNIVERSO

Sobre esses tristes acontecimentos que vêm assolando a nossa cidade, o que me choca é a confirmação da criminalidade nas mãos das crianças, mas ao mesmo tempo não me sinto refém do: “como pode?”.

Assisto a chegada de crianças no projeto, algumas já tão anestesiadas pelo descaso e a violência física e moral desde tão pequenas que, apesar do horror e crueldade desses acontecimentos, tudo isso parece uma inevitável decorrência.

Essas crianças não se reconhecem. “Sou o que dizem de mim”.

Se não sentem a própria presença no mundo, como podem perceber e respeitar a presença do outro?

Vivem da concretude de “ter” para tentarem “ser” através das coisas; e só das coisas...celulares, bonés de grife, bicicletas...

Primeiro passo:
Tirá-las da anestesia, torná-las sensíveis sobre si mesmas para em seguida perceberem o mundo. O resto é progresso, crescimento pessoal e o desejo de ser.

No projeto não há texto, discurso moral ou dogmas religiosos. É só arte. Mas não é a arte resumida em descoberta de talentos ou em produtores do “belo”. É a arte que nos acessa, que nos significa, que abre janelas para se ver, pensar, escutar...

A violência não cabe nesse universo.

segunda-feira, 31 de março de 2014

MAS E A ARTE? O QUE FAZ A ARTE?



Talvez uma das maiores fontes de criação seja os opostos. 
Atravessar a linha que define a fronteira entre um e o outro, pode alimentar do novo e do imprevisível aqueles que conversam com a arte.

Como artista, me atraio pelas inúmeras possibilidades que me oferecem os contrários e de certa forma me repito como arte-educador, já que as diferenças sociais me instigam a pensar as possibilidades de aproximação que podem existir.

Quando produzimos a instalação “O Muro” http://omuro-projetosocialeusou.blogspot.com.br/, queríamos promover a aproximação entre os olhares de jovens da favela do jacarezinho e os olhares da sociedade formal, tendo a arte como instrumento de ligação. Conseguimos. O numero de visitantes e as questões levantadas por eles foram surpreendentes.

Depois de alguns pousos em museus e centros culturais o Muro continua viajando. Em abril de 2014, ficou instalado por três meses no Museu Oscar Niemeyer em Curitiba. 
Este ano vamos retomar a apresentação do "Muro" em novos espaços. Paralelamente demos inicio ao "Eu sou arte”, uma nova obra de instalação artística, interativa, baseada nos obstáculos que dividem a sociedade brasileira, sendo que dessa vez o recurso de comunicação utilizado para atravessar os muros sociais não serão os olhares, mas os corpos de jovens da favela e do asfalto, ocupando os vazios e os sentimentos que vão sendo criados entre eles. 
Simplificadamente, a pergunta que dá origem ao conceito do "Eu sou arte" é:
Quando não há proximidade ou identificação entre diferentes, o que pode existir no espaço entre um e outro?
As respostas serão dadas por cada um dos participantes 
Originalmente acredito que existia apenas um grande espaço vazio, mas a tendência nos dois grupos foi preenchê-lo com  a indiferença e logo a seguir o preconceito.  
Quando os vazios estão localizados entre grupos sociais que já não se reconhecem, como é o caso das favelas e a sociedade reconhecida, podem ir além do descaso e o preconceito para se afirmar na violência. 

Mas e a arte? O que faz a arte?


  • Amplia o olhar para além da concretude das coisas ou do olhar restritivo de um único angulo.
  • Se desenvolve na falta, no vazio e não do que se apresenta pronto, completo, preenchido. 
  • Promove conexões do indivíduo com ele mesmo e assim a ele concede existência.
  • Promove relações com códigos muito próprios, que não precisam passar por premissas ou condições sociais pré-estabelecidas.
Se isso já não bastar vale lembrar que para se produzir ou contemplar arte não é necessário graduação, muito menos falar a mesma língua, ter a mesma raça ou religião. No universo da arte, o diverso é a grande fonte de alimento para ela existir..




terça-feira, 18 de março de 2014

O DENTRO E O FORA NAS FAVELAS DESSA CIDADE

Faço parte da equipe do projeto EU SOU, um projeto social criado pelo arte-educador Helio Rodrigues que usa a arte na construção da subjetividade de crianças e adolescentes moradoras de áreas carentes.
A maior unidade do projeto acontece dentro de um laboratório farmacêutico no bairro do Jacaré e atende principalmente moradores da favela do Jacarezinho, vizinha à fábrica.

Recentemente soubemos que uma espécie de depressão coletiva se abateu sobre a região da favela do Pica-pau situada no complexo do Jacarezinho, depois do trágico incêndio que matou duas crianças de três anos em dezembro do ano passado. Decidimos então ir pessoalmente ao local para falar com as pessoas sobre o projeto e divulgar o período de inscrições para 2014.

O que vi foi um retrato desolador. A completa desassistência que assola a população carente do Rio de Janeiro, faz com que eles tenham que lidar com muitas faltas, mas a maior e pior delas é ter que lidar com a falta de dignidade a que são submetidas pela ausência do poder público. As casas da região margeiam um rio coberto de muito lixo, algumas delas ainda são palafitas. Na casa vizinha aos escombros daquela destruída pelo incêndio, um bebê de cerca de um ano vestindo apenas uma fralda, andava no meio do lixo enquanto uma mulher, talvez sua mãe, talvez sua irmã, em geral não há muita diferença na idade de uma e de outra, o observava apaticamente.

Vamos andando, falando com as pessoas, dentro e fora das casas. Também não são muito claras as fronteiras entre o dentro e fora nas favelas cariocas. As vielas do Pica-Pau são tão estreitas que uma pessoa de braços abertos pode facilmente encostar nas casas vizinhas uma de frente para outra. As pessoas nesse vai e vem estreito, eventualmente dividem o espaço com uma criança de bicicleta que insiste em reivindicar seu direito de ter uma infância normal. Dentro das casas o desafio de abrigar a vida cotidiana de famílias inteiras em um único cômodo faz com que o eu e o outro muitas vezes se confundam.

Em geral temos uma boa receptividade, as pessoas ficam contentes em saber que um sopro de arte pode vir a tocá-las. "É bom pra distrair a mente" diz uma mulher sentada numa pequena cadeira dentro de sua casa, no escuro, uma mão no cigarro caído, a outra no folheto do projeto que eu lhe entregava de onde estava, parada na rua, sem nem precisar me mexer ou esticar muito meu braço.  Seu olhar apagado, tão escuro quanto a casa, tão marcado com a desesperança que pesa sobre ele, me faz ficar na dúvida se ela quer apenas esquecer aquilo tudo, ou se viu, quem sabe, a arte pode iluminar sua
escuridão, ou pelo menos parte dela.

Seguimos. Em algumas esquinas a força de resistência da alegria mítica do carioca aparece. Um grupo conversa animadamente numa parte um pouco mais larga da rua, ali no meio, sentada num degrau, uma mãe fazia carinho em sua filha de uns 10 anos deitada com a cabeça em seu colo. Ela catava os piolhos da menina com cuidado e a filha revirava os olhos de prazer com aquele carinho demorado.

 No grupo, um jovem com necessidade especial me faz pensar nos estímulos que poderia ter para viver melhor e dos quais é tristemente privado. Ali no meio da roda um bebê preocupantemente magro está parado de quatro. Ninguém parece vê-lo. Quando sai engatinhando bem devagarzinho, deixa uma pequena poça em seu lugar. De seu short, sem fralda, o xixi vai pingando por onde ele passa. Assim como a moça do cigarro caído, ele também tem os olhos apagados, poucas coisas são tão impactantes quanto um bebê sem brilho no olhos. Ele me vê conversando com uma das mulheres do grupo e estende a mão em minha direção como se me pedisse algo. Como não tinha mais nada, ofereci um folheto, pensando que talvez ele gostasse de brincar com um papel colorido, mas ele não se mexe nem quando encosto o folheto em sua mão, parece não ter forças para fechá-la. Falo um pouco com ele, mas preciso seguir em frente com o resto da equipe, ele fica ali, chorando de mão estendida em minha direção. Eu? Saio com a garganta fechada e uma enorme opressão no peito.

Nossa equipe provoca algum estranhamento naquele lugar, mas principalmente percebemos muitos sorrisos e agradecimento em nossa direção. Já saindo encontro um casal de uns 60 anos, esses muito articulados e com os olhos bem vivos, como muitos outros que ainda existem e resistem no Pica-Pau.
Os dois ficam muito interessados no que tenho a dizer e quando termino me perguntam: “Você é da prefeitura?”. Respondo que não. “Pois é, que bom saber que existe esse projeto”, dizem eles, “aqui não chega nada da prefeitura. Você pode imaginar, me pergunta ele, quantos músicos temos aqui? Quantos
cantores? Quantos atletas? Quantos artistas?”

Sim, posso imaginar.

Tive o privilégio de conhecer alguns deles nos meus anos de trabalho no Projeto Eu Sou e estou certa que conhecerei muitos mais.

Saio com um pouco daquele lugar e daquelas pessoas dentro de mim. Não há mesmo muita diferença entre o dentro e o fora nas favelas desta cidade.

Andrea Glicberg Spiegel
Arteterapeuta e Arte-educadora






segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

SEXUALIDADE - Relato de uma observação

Nos meios onde a afetividade por qualquer razão não é desenvolvida, a sexualidade prematura pode ocupar o espaço vazio.
Em muitas famílias só vamos encontrar algum contato afetivo durante o primeiro ano de vida de suas crianças. Com o passar do tempo as ações afetivas tornam-se cada vez mais escassas. Muitos podem ser os motivos para esse comportamento tão recorrente. De qualquer modo, a falta de recursos básicos de sobrevivência, somada à discriminação social que sofrem os indivíduos desfavorecidos, já são motivos suficientes para que o afeto se torne um “luxo dispensável” na ordem de suas prioridades.
Como o afeto é reconhecidamente um dos principais fatores para o desenvolvimento e manutenção da autoestima, podemos então compreender porque as comunidades pobres são também grandes celeiros de baixas autoestimas.
Há uma relação muito estreita entre a construção da identidade e o valor que o indivíduo dá para si mesmo. Nosso trabalho no projeto visa exatamente resgatar valores subestimados por indivíduos da periferia social, e assim favorecer uma dinâmica em que autoestima e identidade se nutrem e se constroem mutuamente.
Observando as crianças que entram no projeto “Eu sou”, percebe-se que as meninas parecem fantasiar a maternidade como um recurso possível para a construção de suas identidades. Através do desejo de maternidade, elas se vêm “re-produzindo” (como se estivessem produzindo a si mesmas mais uma vez). Com a maternidade elas acreditam que poderão ter, quase que fundido ao próprio corpo, algo realmente delas e com o qual poderão se relacionar, se verem refletidas, se projetarem.
Quando de fato esse desejo se realiza e essas meninas se tornam mães, a cada dia desse contato mãe e filho se amplia uma simbiose, construída e revitalizada constantemente por sentimentos compartilhados.
À medida que esse encanto da mútua dependência vai se desfazendo, em grande parte por obra da dura realidade que faz com que as necessidades mais básicas não sejam atendidas e a história parece se repetir, vai também ocorrendo um gradual afastamento físico-afetivo entre mãe e filho.
Permanece muitas vezes, apenas uma preocupação e um amor velados pelas camadas sucessivas de frustração a que essas mães se submetem.
S. é uma menina de 11 anos, com sérios comprometimentos afetivos como tantas outras que atendemos no projeto. Distribui seu tempo entre a catação de latas nos lixos das proximidades da favela onde mora e a escola, da qual pouco participa. Tem uma maternal e repressora relação com o irmão de 10 anos.
Durante todo o tempo em que participou das aulas no projeto, pouco falou de sua mãe e nunca de pai ou alguma avó. Quando a conhecemos, tinha uma aparência descuidada no vestir e pentear-se e durante um bom tempo teve um comportamento de desconfiança com relação aos professores e colegas, além de nítido desprezo pelos seus produtos. Se limitava a reprimir o irmão, sempre com um linguajar agressivo com ele e com a vida. Algumas vezes S.se apoiou em uma certa religiosidade, reforçando a ideia de um Jesus poderoso e punitivo.
Depois de uns 3 meses frequentando as aulas do projeto, foi descobrindo um potencial que lentamente a levou a um processo de auto identificação. À partir daí, começou a esboçar os primeiros sorrisos e uma expressão facial mais relaxada. Desvinculou-se do compromisso de controlar o irmão e passou a proteger seus produtos.
Desenvolveu um trabalho em argila que ilustra muito bem essa relação, que estabelecem algumas meninas entre identidade e maternidade.
Construiu com massa e tintas uma espécie de maquete à partir de um bebê e uma mãe. Realizados esses dois personagens (que até podemos ler como um único personagem: ela própria), criou cuidadosamente o entorno para os seus personagens: berço, cadeira, cama, travesseiros, sofá, almofadas, tapete, estante e objetos como: mamadeira, brinquedos, etc...
Todo início de aula conferia em sua prateleira de trabalhos, se sua maquete permanecia lá, inteira. Os detalhes de execução a que ela se deteve, assim como a suavidade das cores que utilizou em seu pequeno sonho em construção, se contrastavam com o aspecto rude, seco e até desagradável de seu comportamento no início do projeto. Ocorreu, portanto, uma verdadeira transformação, tanto no seu comportamento, que se tornou até carinhoso, como nas suas atitudes de um modo geral.
Tornaram-se também visíveis os cuidados com o próprio corpo e aparência.
Demonstrações simples de afeto são raras em grupos que se formam à margem da sociedade formal. As condições de total precariedade física e material criam um meio ambiente afetivo e emocional também precário e deturpado. Para muitas crianças, o contato físico decorrente de uma possível relação afetiva se resume à sexualidade explícita que alguns inevitavelmente assistem dentro dos ínfimos cômodos que famílias inteiras compartilham. Portanto, nessas condições, essas crianças são sexualmente e afetivamente violentadas.
Quando se fala em violência, comumente associamos às agressões físicas. No entanto, toda experiência ou ação que atravessa os limites que uma pessoa pode suportar, torna-se uma  forma de violência imposta à estrutura desse indivíduo.
Quando digo que muitas de nossas crianças são violentadas sexualmente, estou incluindo nessa minha afirmação, todas essas experiências inapropriadas que lhes são impostas pelas condições de vida às quais elas estão socialmente submetidas.
A partir dessas condições, se inicia uma cultura que mistura e confunde afeto com sexualidade, ou ainda, promove a ideia de que não existe afeto sem sexo.
Muitos desenhos, pinturas e esculturas produzidas por nossas crianças têm dado conta de boa parte dessa realidade e, mais do que registros para elas, suas ações criativas associadas ao afetuoso acolhimento de todos nós, têm sido um forte recurso, uma forma de apoio para que possam rever esses valores que fazem do sexo, sinônimo de afeto.


terça-feira, 28 de janeiro de 2014

CRIMINALIDADE E ARTE

Na novela “Amor à vida” exibida até recentemente pela TV Globo, o personagem Ninho, vivido por Juliano Casarré, é um artista plástico que divide seu tempo entre a arte e a criminalidade. Apesar do excelente trabalho do ator, que emprega um tom ingênuo, quase burro ao personagem, para, quem sabe, conseguir reunir esses dois perfis num só sem precisar lançar mão de uma esquizofrenia, confesso, não consegui acreditar nessa parceria.
Já faz bastante tempo que me dedico à arte-educação e, entre as minhas ações, o projeto “Eu sou” tem sido um espaço de colheita de excelentes resultados, por isso posso afirmar: ainda não assisti alunos que depois de estabelecerem vínculos verdadeiros com a arte tivessem ido ao encontro ou debandado para a criminalidade. Sinto que há algo de incompatível nessa dupla escolha.
Acredito, que à partir do contato com a subjetividade que propõe a arte é também promovido o desenvolvimento de um valor maior nos sujeitos, ou ao menos ela traz reflexões a respeito deles. 
Durante o processo de relação entre o indivíduo e a arte, a primeira conquista é a autodescoberta que traz estima ao próprio indivíduo e consequentemente maior valor sobre si mesmo. Nutrir-se de si mesmo; isso é o que fundamenta, é o que dá origem ao processo de construção de sujeitos.
A descoberta do outro costuma ocorrer num movimento seguinte; como uma continuidade de si mesmo essa descoberta confirma a própria existência ao mesmo tempo em que leva à valorização desse outro ou ao menos algum respeito por ele.
 Vividos esses dois processos tão importantes de construção, esses indivíduos então descobrem o poder que têm de mudar o entorno; e assim se fazem sujeitos políticos, sociais e afetivos.
É ainda essa subjetivação (valorização do sujeito), tão bem veiculada pela arte, que pode equilibrar o excesso de valor que é dado à coisa nesse mundo em que vivemos.
Em resumo:
O que, eliminando-se as patologias (que aliás pouca representação têm nas estatísticas), pode ser mais responsável pela criminalidade do que: o pouco valor à vida, as passionalidades e o desejo de ser através da conquista de coisas?
Não precisamos de pessoas-máquinas, pessoas repetidoras, nossa era é pós industrial. Não precisamos de auto desconhecidos, eles não têm porque preservar a própria vida ou a dos outros. Precisamos de seres pensantes, produtivos. Já temos muitos vivendo à margem da sociedade formal, basta resgatá-los com educação e arte.


TRANSFORMAÇÃO DAS ARMAS