Nos meios onde a afetividade
por qualquer razão não é desenvolvida, a sexualidade prematura pode ocupar o
espaço vazio.
Em muitas famílias só vamos
encontrar algum contato afetivo durante o primeiro ano de vida de suas
crianças. Com o passar do tempo as ações afetivas tornam-se cada vez mais
escassas. Muitos podem ser os motivos para esse comportamento tão recorrente.
De qualquer modo, a falta de recursos básicos de sobrevivência, somada à
discriminação social que sofrem os indivíduos desfavorecidos, já são motivos
suficientes para que o afeto se torne um “luxo dispensável” na ordem de
suas prioridades.
Como o afeto é reconhecidamente
um dos principais fatores para o desenvolvimento e manutenção da autoestima,
podemos então compreender porque as comunidades pobres são também grandes
celeiros de baixas autoestimas.
Há uma relação muito
estreita entre a construção da identidade e o valor que o indivíduo dá para si
mesmo. Nosso trabalho no projeto visa exatamente resgatar valores subestimados
por indivíduos da periferia social, e assim favorecer uma dinâmica em que
autoestima e identidade se nutrem e se constroem mutuamente.
Observando as crianças que
entram no projeto “Eu sou”, percebe-se que as meninas parecem fantasiar a
maternidade como um recurso possível para a construção de suas identidades.
Através do desejo de maternidade, elas se vêm “re-produzindo” (como se
estivessem produzindo a si mesmas mais uma vez). Com a maternidade elas
acreditam que poderão ter, quase que fundido ao próprio corpo, algo realmente
delas e com o qual poderão se relacionar, se verem refletidas, se projetarem.
Quando de fato esse desejo
se realiza e essas meninas se tornam mães, a cada dia desse contato mãe e filho
se amplia uma simbiose, construída e revitalizada constantemente por
sentimentos compartilhados.
À medida que esse encanto da
mútua dependência vai se desfazendo, em grande parte por obra da dura realidade
que faz com que as necessidades mais básicas não sejam atendidas e a história
parece se repetir, vai também ocorrendo um gradual afastamento físico-afetivo
entre mãe e filho.
Permanece muitas vezes,
apenas uma preocupação e um amor velados pelas camadas sucessivas de frustração
a que essas mães se submetem.
S. é uma menina de 11 anos,
com sérios comprometimentos afetivos como tantas outras que atendemos no
projeto. Distribui seu tempo entre a catação de latas nos lixos das
proximidades da favela onde mora e a escola, da qual pouco participa. Tem uma
maternal e repressora relação com o irmão de 10 anos.
Durante todo o tempo em que
participou das aulas no projeto, pouco falou de sua mãe e nunca de pai ou
alguma avó. Quando a conhecemos, tinha uma aparência descuidada no vestir e
pentear-se e durante um bom tempo teve um comportamento de desconfiança com
relação aos professores e colegas, além de nítido desprezo pelos seus produtos.
Se limitava a reprimir o irmão, sempre com um linguajar agressivo com ele e com a vida.
Algumas vezes S.se apoiou em uma certa religiosidade, reforçando a ideia de um
Jesus poderoso e punitivo.
Depois de uns 3 meses
frequentando as aulas do projeto, foi descobrindo um potencial que lentamente a
levou a um processo de auto identificação. À partir daí, começou a esboçar os
primeiros sorrisos e uma expressão facial mais relaxada. Desvinculou-se do
compromisso de controlar o irmão e passou a proteger seus produtos.
Desenvolveu um trabalho em
argila que ilustra muito bem essa relação, que estabelecem algumas meninas
entre identidade e maternidade.
Construiu com massa e tintas
uma espécie de maquete à partir de um bebê e uma mãe. Realizados esses dois
personagens (que até podemos ler como um único personagem: ela
própria), criou cuidadosamente o entorno para os seus personagens: berço,
cadeira, cama, travesseiros, sofá, almofadas, tapete, estante e objetos como:
mamadeira, brinquedos, etc...
Todo início de aula conferia
em sua prateleira de trabalhos, se sua maquete permanecia lá, inteira. Os
detalhes de execução a que ela se deteve, assim como a suavidade das cores que
utilizou em seu pequeno sonho em construção, se contrastavam com o aspecto
rude, seco e até desagradável de seu comportamento no início do projeto.
Ocorreu, portanto, uma verdadeira transformação, tanto no seu comportamento,
que se tornou até carinhoso, como nas suas atitudes de um modo geral.
Tornaram-se também visíveis
os cuidados com o próprio corpo e aparência.
Demonstrações simples de
afeto são raras em grupos que se formam à margem da sociedade formal. As
condições de total precariedade física e material criam um meio ambiente
afetivo e emocional também precário e deturpado. Para muitas crianças, o
contato físico decorrente de uma possível relação afetiva se resume à
sexualidade explícita que alguns inevitavelmente assistem dentro dos ínfimos
cômodos que famílias inteiras compartilham. Portanto, nessas condições, essas
crianças são sexualmente e afetivamente violentadas.
Quando se fala em violência,
comumente associamos às agressões físicas. No entanto, toda experiência ou ação
que atravessa os limites que uma pessoa pode suportar, torna-se uma forma de violência imposta à estrutura desse
indivíduo.
Quando digo que muitas de
nossas crianças são violentadas sexualmente, estou incluindo nessa minha
afirmação, todas essas experiências inapropriadas que lhes são impostas pelas
condições de vida às quais elas estão socialmente submetidas.
A partir dessas condições, se inicia uma cultura que mistura e confunde afeto com sexualidade, ou
ainda, promove a ideia de que não existe afeto sem sexo.
Muitos desenhos, pinturas e
esculturas produzidas por nossas crianças têm dado conta de boa parte dessa
realidade e, mais do que registros para elas, suas ações criativas associadas
ao afetuoso acolhimento de todos nós, têm sido um forte recurso, uma forma de
apoio para que possam rever esses valores que fazem do sexo, sinônimo de afeto.