Grave o seu nome, seu traço e reconheça a sua cor preferida. Num instante seguinte, mude de cor e de traço; se quiser, mude até a forma como desenha o seu nome. Descubra a liberdade de se transformar e de fazer a sua própria história”.

Helio Rodrigues


domingo, 5 de dezembro de 2010

PRIMEIRO, O AUTOCONHECIMENTO

“O terreno da aprendizagem só se torna fértil se for preparado com autoconhecimento.”


Estamos vivendo um importante período, em que os governantes parecem estar, enfim, preocupados com a reabilitação social e profissional de grupos que se desenvolveram a margem da sociedade constituída ao longo de décadas de descaso.
Cada vez mais, fala-se de projetos para inclusão social. Projetos que preparem os jovens moradores dessas comunidades marginais para o mercado de trabalho. Como principal meta, quer-se produzir "ocupação profissional" especialmente para as áreas ocupadas pelas UPPS.
Sem dúvida, são fundamentais essas ações para que haja verdadeiramente resgate social. No entanto, é importante pensar que, em termos educacionais, não há possibilidade de se transformar uma informação em conhecimento se não houverem experiências anteriores que tenham dado partida ao autoconhecimento.
Há seis anos, uma empresa carioca(Farmoquímica), situada no bairro do Jacaré, acreditou na importância desse principio como base para o resgate social e passou a patrocinar o projeto "Eu sou", possibilitando a uma equipe de arte-educadores atenderem a 120 crianças e jovens por ano, moradores da comunidade do Jacarezinho.
Nós da equipe do projeto, por termos alcançado resultados tão surpreendentes, não temos dúvida de que é através da arte que um indivíduo, de qualquer idade, pode se auto reconhecer.
Reconhecer-se promove inevitavelmente um contato com a própria potencialidade e com a presença dela, as informações parecem encontrar "liga" e se transformam em conhecimento.
Que a arte é promotora do autoconhecimento e valorizadora da potencialidade dos indivíduos, isso é certo. Não é, portanto, por acaso, que o esporte (por suas afinidades com a arte), a música e as artes plásticas, costumam produzir tão bons resultados no campo do resgate social.
Um bom exemplo disso, são os efeitos positivos obtidos pelo "Afroreggae", que há tantos anos vem retirando jovens da criminalidade.
Mas retiram como? Ensinando técnicas musicais?
Não, promovendo principalmente o contato dos jovens com eles mesmos e assim fazendo emergir as suas potencialidades.
Caminhos como os trilhados pelo "Afroreggae" ou como o projeto "Eu sou" que têm a arte como instrumento para suas ações, podem ter formas distintas de atuação, mas na verdade têm objetivos comuns: o fortalecimento do "eu".
Sob esse princípio, portanto, a tão desejada "ocupação profissional" só e capaz de ocorrer se houver um trabalho educacional que envolva, paralelamente, conhecimento profissional e autoconhecimento, ou não haverá terreno fértil para o desenvolvimento.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

MÁSCARAS

Num determinado momento do projeto todos nós orientadores nos dedicamos à produção de máscaras modeladas sobre o rosto de nossos alunos. Um especial afeto se desenvolve entre orientadores e alunos. Segundo Andrea Spiegel, uma das orientadoras, “o rosto tem a marca da identidade, mas sinto que vamos para além disso, pois tocar um rosto com reverência traz a dimensão do sagrado”.

sábado, 7 de agosto de 2010

ROMPENDO A ANESTESIA

Minha cabeça anda inquieta e feliz pelo que nós da equipe temos perseguido. Tenho pensado muito na importância dessa constante reflexão que todos nós arte-educadores precisamos fazer já que é muito tênue a linha que separa o estabelecido e a arte (o ordinário e o extraordinário).
Precisamos mesmo ficar atentos para as diferenças entre, por exemplo, o conforto e a inquietação ou mesmo um padrão de certezas e a ousadia viva que, generosamente, nos oferecem as dúvidas.
Nosso trabalho é assim mesmo, entendemos uma parte e a outra nos aguça para continuarmos tentando.
No caso das crianças que atendemos no projeto, suas histórias são repletas de incompreensões, violências, injustiças, infelizmente potencializadas pela distância que elas vivem do imaginário, do sonho, do abstrato. Por isso, é comum assistirmos sensibilidades anestesiadas, tornando os primeiros contatos com a arte sempre difíceis, repletos de resistências.
Cada uma que ajudamos a romper essa barreira transforma-se no grande estímulo para buscarmos a multiplicação dessa conquista.

Há um ensaio do filósofo Paul Valéry sobre os mitos, que ele conclui assim:
“O que seríamos nós sem o recurso daquilo que não existe? Pouca coisa, e nossos espíritos, desocupados, tenderiam a fenecer se as fábulas, os enganos, as abstrações, as crenças e os monstros, as hipóteses e os pretensos problemas da metafísica não habitassem com seres e imagens sem objetos nossas profundezas e nossas trevas naturais”.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

O MEDO DO ABSTRATO

Sentimentos, assim como tudo que se configura abstrato, se desenvolvem no imensurável e é essa capacidade de se adaptar a qualquer medida, que faz deles potenciais promotores tanto do prazer quanto da dor, com intensidades e tamanhos que sempre irão variar dependendo do valor e da medida que é dada a eles.
Talvez seja pela riqueza de possibilidades existentes nesse espaço sem medida que, para não se aventurarem no ilimitável,muitos procuram realizações concretas.
No projeto, encontramos crianças e jovens que parecem se assegurar em pensamentos e ações concretas para melhor lidarem com suas inseguranças. Evidentemente, o universo concreto, apesar de aparentemente mais seguro do que o abstrato, é sem dúvida mais limitador das ações criativas, no entanto, não se configura um impedimento para a arte, já que mesmo as "coisas" que compõem o universo visível, podem se constituir simbólicas. E é também com símbolos que a linguagem artística pode surgir

domingo, 16 de maio de 2010

INTELIGÊNCIA EMOCIONAL

O projeto “Eu sou” e “Eu quero” trabalha para o desenvolvimento dessa inteligência entre os grupos de crianças e jovens que atende.
Através de propostas artísticas específicas, buscamos estimular o autoconhecimento nas nossas crianças e, só depois de instalada essa conquista, promovemos o “ir de encontro ao outro”, comumente chamado de socialização.
Percebemos que essas relações interpessoais só passam a ser realmente produtivas (portanto capazes se promover desenvolvimento a todos os envolvidos), quando o indivíduo é capaz de se deslocar e se “colocar no lugar do outro”.
É dessa soma: autoconhecimento e percepção do outro (em suas diferenças e semelhanças), que se produz um campo possível de desenvolvimento para o que podemos chamar de inteligência emocional.
Como as questões relacionadas com a subjetividade são as grandes colaboradoras do crescimento dessa inteligência, é no criativo e na arte que vamos encontrar a grande potência; a fonte desse saber e desenvolver. No entanto, a educação instalada vem priorizando as conquistas técnicas e tecnológicas, tratando-as como únicas para a construção de um “indivíduo idealizado”. Pessoas vêm sendo pasteurizadas no máximo em “grupos iguais”, enquanto novas sociedades (tanto as afetivas quanto as profissionais) vêm se unindo às diferenças pelos mais variados motivos, inclusive para não se repetirem simplesmente e indefinidamente.
Há uma urgência na revisão do papel e importância da arte dentro dos meios que se dizem promotores dessa “formação”, para que esses (meios educacionais), não ampliem ainda mais a distância e o antagonismo que vêm se estabelecendo entre eles e essa nova sociedade que ganha forma.
Não acredito em educação sem a arte, assim como não acredito em crescimento sem um olhar diferenciado. Não há inteligência emocional sem o criativo e a particularidade.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

UMA CASA QUE ME (RE)CONSTRUA

“Ao construir essas paredes, protegê-las por um teto, abrir janelas, portas e às vezes até colocar dentro dela móveis, objetos e pessoas, eu me reconstruo”.
Criança imaginária

O contato de um indivíduo com a arte parece só ganhar importância quando o seu criativo apresenta contornos de linguagem. Talvez somente depois da criação e o desenvolvimento de códigos, se estabeleçam verdadeiramente os primeiros vínculos entre o indivíduo e a arte.
Pessoalmente, só nomeio como arte, produtos ou ações artísticas que transponham o óbvio e consequentemente me façam pensar. Portanto, no universo artístico infantil, aquelas tradicionais produções recheadas de casinhas com chaminés, flores, árvores e morros redondos aquecidos por um sol com carinha, são na verdade a construção de um desafio; obstáculos colocados entre o indivíduo e a arte, que nós arte-educadores precisamos ajudar a transpor.
Sempre acreditei que, somente quando estereótipos perdem a força e são substituídos por resultados particulares, genuínos, é que se inicia um processo verdadeiramente expressivo. No entanto, o contato intensivo, que passei a ter, nesses últimos anos, com crianças “desnutridas de si mesmas”, como é o caso de muitas que atendemos no projeto, me fez reavaliar o olhar e o pensar a respeito.
Percebi que elementos típicos da representação estereotipada, como casinhas, flores, sóis e corações podem na verdade ir muito além da linguagem vazia e previsível que eu preconceituava, para se constituírem como elementos altamente simbolizadores de experiências vividas ou desejadas por essas crianças e jovens.
Quando essas crianças chegam ao projeto, a grande maioria jamais teve contato com outra linguagem que não seja com aquela em que se tentam conquistas básicas e concretas: uma linguagem de sobrevivência, de subsistência. Portanto, esperar uma relação dessa criança com um universo simbólico mais rico, ou seja, mais criativo pode ser no mínimo prematuro para não dizer irreal. O que acredito que se precisa rever e reconsiderar é que elementos comuns e aparentemente óbvios como as simples casinhas, podem conter simbolicamente muito do universo de experiências e desejos, tendo como prioridade o acolhimento e a proteção de quatro paredes.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A ARTE COMO FORMA DE CONTATO

Cristina sempre foi silenciosa, até mesmo um pouco tímida, mas nunca resistiu às possibilidades expressivas da arte como fazem muitos jovens. Aos onze anos se inscreveu sozinha no projeto “Eu sou”. Enquanto isso, sua mãe ficava na fila para consultas médicas que eram realizadas dentro da Obra social que acolhe esse núcleo do projeto.
Nunca conseguimos descobrir se sua mãe era só hipocondríaca ou se realmente sofria de alguma outra doença. A verdade é que todas as vezes que conseguimos fazer contato com ela, o diálogo que conseguíamos estabelecer sempre percorria os meandros da dor, da doença, da impossibilidade e do fim. Depressiva, posso afirmar que sim, a mãe de Cristina era. Algumas vezes surgiu “pela metade”, se esgueirando a meio corpo na porta da sala de aula. Em geral vinha chamar a filha para ir embora antes da hora, porque não se sentia bem, ou porque precisava de um remédio, fazer um exame ou qualquer outro procedimento médico.
Nas reuniões que promovemos com os pais, a mãe da Cristina esteve presente uma única vez. Nesses encontros, costumamos ocupar a maior parte do tempo com alguma prática e a partir dela desenvolvemos uma conversa informal com os participantes. Lembro-me que ela fez um cestinho vazio de argila e preferiu não pintar apesar das tantas cores em potes à sua volta. Não falou nada durante a modelagem, muito menos depois de terminada. Apesar de um olhar empobrecido e esvaziado como era sua peça de argila, a mãe de Cristina experimentou algum “contato”, expressando-se por intermédio de seu cesto vazio.
Ao contrário de sua mãe, Cristina sempre reproduziu a riqueza de sua imaginação através de todas as técnicas e propostas que foram apresentadas durante os oito meses que participou do projeto.
Acredito que era através dos consecutivos discursos sobre o próprio fim, que a mãe se fazia representar constantemente para a filha, mas ao mesmo tempo, sem saber, ela oferecia argumento para a produção artística de sua filha. A morte havia se tornado para Cristina uma linguagem para a sua arte e um elo de comunicação possível entre ela e sua mãe.
Alguns de seus trabalhos apresentavam de forma quase descritiva o tema da morte através de cemitérios, túmulos ou figuras horizontais. Por vezes utilizava outros elementos sem relação direta, apenas simbólica com o tema, no entanto não havia morbidez, ou fixação na morte como fim em si. Havia na verdade, uma espécie de relação com o começo de algo, que poderia vir a ocorrer, caso ela conseguisse alcançar a mãe. Percebia-se a presença em praticamente todas as suas produções, do desejo e da impossibilidade desse contato.
A beleza contida nos trabalhos de Cristina, era em grande parte reforçada pela particularidade de sua linguagem. Essa menina utilizou-se de variados recursos técnicos para representar a distância e o ruído que constantemente inviabilizava seu contato com a mãe.
Seus desenhos, pinturas e monotipias sobre papel, depois de cuidadosamente tratados, eram também cuidadosamente cobertos por camadas de tinta ou de giz. No entanto, observava-se que essas camadas nunca cobriam totalmente a primeira etapa de seus trabalhos, pareciam mesmo ter a intenção de deixar vestígios.
É comum assistirmos crianças cobrirem inteiramente seus movimentos iniciais com tintas carregadas de intenção destrutiva, no entanto, no caso de Cristina era diferente, não havia um gestual agressivo que nos fizesse pensar nessa possibilidade. Ela apenas “sepultava” suas obras com o auxílio de lápis de cera branco ou finas camadas de giz, carvão ou de aquarela. Esses materiais eram escolhidos por ela, possivelmente porque cobrem, mas não escondem.
É sempre uma grande oportunidade, para nós arte-educadores, identificamos os “contatos” criados por alguns alunos com o mundo. Como privilegiados espectadores de algumas dessas “conversas”, acredito já ser bastante, oferecermos recursos que promovam a ampliação do vocabulário criativo de nossos atendidos.

TRANSFORMAÇÃO DAS ARMAS