Grave o seu nome, seu traço e reconheça a sua cor preferida. Num instante seguinte, mude de cor e de traço; se quiser, mude até a forma como desenha o seu nome. Descubra a liberdade de se transformar e de fazer a sua própria história”.

Helio Rodrigues


segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A ARTE COMO FORMA DE CONTATO

Cristina sempre foi silenciosa, até mesmo um pouco tímida, mas nunca resistiu às possibilidades expressivas da arte como fazem muitos jovens. Aos onze anos se inscreveu sozinha no projeto “Eu sou”. Enquanto isso, sua mãe ficava na fila para consultas médicas que eram realizadas dentro da Obra social que acolhe esse núcleo do projeto.
Nunca conseguimos descobrir se sua mãe era só hipocondríaca ou se realmente sofria de alguma outra doença. A verdade é que todas as vezes que conseguimos fazer contato com ela, o diálogo que conseguíamos estabelecer sempre percorria os meandros da dor, da doença, da impossibilidade e do fim. Depressiva, posso afirmar que sim, a mãe de Cristina era. Algumas vezes surgiu “pela metade”, se esgueirando a meio corpo na porta da sala de aula. Em geral vinha chamar a filha para ir embora antes da hora, porque não se sentia bem, ou porque precisava de um remédio, fazer um exame ou qualquer outro procedimento médico.
Nas reuniões que promovemos com os pais, a mãe da Cristina esteve presente uma única vez. Nesses encontros, costumamos ocupar a maior parte do tempo com alguma prática e a partir dela desenvolvemos uma conversa informal com os participantes. Lembro-me que ela fez um cestinho vazio de argila e preferiu não pintar apesar das tantas cores em potes à sua volta. Não falou nada durante a modelagem, muito menos depois de terminada. Apesar de um olhar empobrecido e esvaziado como era sua peça de argila, a mãe de Cristina experimentou algum “contato”, expressando-se por intermédio de seu cesto vazio.
Ao contrário de sua mãe, Cristina sempre reproduziu a riqueza de sua imaginação através de todas as técnicas e propostas que foram apresentadas durante os oito meses que participou do projeto.
Acredito que era através dos consecutivos discursos sobre o próprio fim, que a mãe se fazia representar constantemente para a filha, mas ao mesmo tempo, sem saber, ela oferecia argumento para a produção artística de sua filha. A morte havia se tornado para Cristina uma linguagem para a sua arte e um elo de comunicação possível entre ela e sua mãe.
Alguns de seus trabalhos apresentavam de forma quase descritiva o tema da morte através de cemitérios, túmulos ou figuras horizontais. Por vezes utilizava outros elementos sem relação direta, apenas simbólica com o tema, no entanto não havia morbidez, ou fixação na morte como fim em si. Havia na verdade, uma espécie de relação com o começo de algo, que poderia vir a ocorrer, caso ela conseguisse alcançar a mãe. Percebia-se a presença em praticamente todas as suas produções, do desejo e da impossibilidade desse contato.
A beleza contida nos trabalhos de Cristina, era em grande parte reforçada pela particularidade de sua linguagem. Essa menina utilizou-se de variados recursos técnicos para representar a distância e o ruído que constantemente inviabilizava seu contato com a mãe.
Seus desenhos, pinturas e monotipias sobre papel, depois de cuidadosamente tratados, eram também cuidadosamente cobertos por camadas de tinta ou de giz. No entanto, observava-se que essas camadas nunca cobriam totalmente a primeira etapa de seus trabalhos, pareciam mesmo ter a intenção de deixar vestígios.
É comum assistirmos crianças cobrirem inteiramente seus movimentos iniciais com tintas carregadas de intenção destrutiva, no entanto, no caso de Cristina era diferente, não havia um gestual agressivo que nos fizesse pensar nessa possibilidade. Ela apenas “sepultava” suas obras com o auxílio de lápis de cera branco ou finas camadas de giz, carvão ou de aquarela. Esses materiais eram escolhidos por ela, possivelmente porque cobrem, mas não escondem.
É sempre uma grande oportunidade, para nós arte-educadores, identificamos os “contatos” criados por alguns alunos com o mundo. Como privilegiados espectadores de algumas dessas “conversas”, acredito já ser bastante, oferecermos recursos que promovam a ampliação do vocabulário criativo de nossos atendidos.

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TRANSFORMAÇÃO DAS ARMAS