Grave o seu nome, seu traço e reconheça a sua cor preferida. Num instante seguinte, mude de cor e de traço; se quiser, mude até a forma como desenha o seu nome. Descubra a liberdade de se transformar e de fazer a sua própria história”.

Helio Rodrigues


segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

SEXUALIDADE - Relato de uma observação

Nos meios onde a afetividade por qualquer razão não é desenvolvida, a sexualidade prematura pode ocupar o espaço vazio.
Em muitas famílias só vamos encontrar algum contato afetivo durante o primeiro ano de vida de suas crianças. Com o passar do tempo as ações afetivas tornam-se cada vez mais escassas. Muitos podem ser os motivos para esse comportamento tão recorrente. De qualquer modo, a falta de recursos básicos de sobrevivência, somada à discriminação social que sofrem os indivíduos desfavorecidos, já são motivos suficientes para que o afeto se torne um “luxo dispensável” na ordem de suas prioridades.
Como o afeto é reconhecidamente um dos principais fatores para o desenvolvimento e manutenção da autoestima, podemos então compreender porque as comunidades pobres são também grandes celeiros de baixas autoestimas.
Há uma relação muito estreita entre a construção da identidade e o valor que o indivíduo dá para si mesmo. Nosso trabalho no projeto visa exatamente resgatar valores subestimados por indivíduos da periferia social, e assim favorecer uma dinâmica em que autoestima e identidade se nutrem e se constroem mutuamente.
Observando as crianças que entram no projeto “Eu sou”, percebe-se que as meninas parecem fantasiar a maternidade como um recurso possível para a construção de suas identidades. Através do desejo de maternidade, elas se vêm “re-produzindo” (como se estivessem produzindo a si mesmas mais uma vez). Com a maternidade elas acreditam que poderão ter, quase que fundido ao próprio corpo, algo realmente delas e com o qual poderão se relacionar, se verem refletidas, se projetarem.
Quando de fato esse desejo se realiza e essas meninas se tornam mães, a cada dia desse contato mãe e filho se amplia uma simbiose, construída e revitalizada constantemente por sentimentos compartilhados.
À medida que esse encanto da mútua dependência vai se desfazendo, em grande parte por obra da dura realidade que faz com que as necessidades mais básicas não sejam atendidas e a história parece se repetir, vai também ocorrendo um gradual afastamento físico-afetivo entre mãe e filho.
Permanece muitas vezes, apenas uma preocupação e um amor velados pelas camadas sucessivas de frustração a que essas mães se submetem.
S. é uma menina de 11 anos, com sérios comprometimentos afetivos como tantas outras que atendemos no projeto. Distribui seu tempo entre a catação de latas nos lixos das proximidades da favela onde mora e a escola, da qual pouco participa. Tem uma maternal e repressora relação com o irmão de 10 anos.
Durante todo o tempo em que participou das aulas no projeto, pouco falou de sua mãe e nunca de pai ou alguma avó. Quando a conhecemos, tinha uma aparência descuidada no vestir e pentear-se e durante um bom tempo teve um comportamento de desconfiança com relação aos professores e colegas, além de nítido desprezo pelos seus produtos. Se limitava a reprimir o irmão, sempre com um linguajar agressivo com ele e com a vida. Algumas vezes S.se apoiou em uma certa religiosidade, reforçando a ideia de um Jesus poderoso e punitivo.
Depois de uns 3 meses frequentando as aulas do projeto, foi descobrindo um potencial que lentamente a levou a um processo de auto identificação. À partir daí, começou a esboçar os primeiros sorrisos e uma expressão facial mais relaxada. Desvinculou-se do compromisso de controlar o irmão e passou a proteger seus produtos.
Desenvolveu um trabalho em argila que ilustra muito bem essa relação, que estabelecem algumas meninas entre identidade e maternidade.
Construiu com massa e tintas uma espécie de maquete à partir de um bebê e uma mãe. Realizados esses dois personagens (que até podemos ler como um único personagem: ela própria), criou cuidadosamente o entorno para os seus personagens: berço, cadeira, cama, travesseiros, sofá, almofadas, tapete, estante e objetos como: mamadeira, brinquedos, etc...
Todo início de aula conferia em sua prateleira de trabalhos, se sua maquete permanecia lá, inteira. Os detalhes de execução a que ela se deteve, assim como a suavidade das cores que utilizou em seu pequeno sonho em construção, se contrastavam com o aspecto rude, seco e até desagradável de seu comportamento no início do projeto. Ocorreu, portanto, uma verdadeira transformação, tanto no seu comportamento, que se tornou até carinhoso, como nas suas atitudes de um modo geral.
Tornaram-se também visíveis os cuidados com o próprio corpo e aparência.
Demonstrações simples de afeto são raras em grupos que se formam à margem da sociedade formal. As condições de total precariedade física e material criam um meio ambiente afetivo e emocional também precário e deturpado. Para muitas crianças, o contato físico decorrente de uma possível relação afetiva se resume à sexualidade explícita que alguns inevitavelmente assistem dentro dos ínfimos cômodos que famílias inteiras compartilham. Portanto, nessas condições, essas crianças são sexualmente e afetivamente violentadas.
Quando se fala em violência, comumente associamos às agressões físicas. No entanto, toda experiência ou ação que atravessa os limites que uma pessoa pode suportar, torna-se uma  forma de violência imposta à estrutura desse indivíduo.
Quando digo que muitas de nossas crianças são violentadas sexualmente, estou incluindo nessa minha afirmação, todas essas experiências inapropriadas que lhes são impostas pelas condições de vida às quais elas estão socialmente submetidas.
A partir dessas condições, se inicia uma cultura que mistura e confunde afeto com sexualidade, ou ainda, promove a ideia de que não existe afeto sem sexo.
Muitos desenhos, pinturas e esculturas produzidas por nossas crianças têm dado conta de boa parte dessa realidade e, mais do que registros para elas, suas ações criativas associadas ao afetuoso acolhimento de todos nós, têm sido um forte recurso, uma forma de apoio para que possam rever esses valores que fazem do sexo, sinônimo de afeto.


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TRANSFORMAÇÃO DAS ARMAS