Grave o seu nome, seu traço e reconheça a sua cor preferida. Num instante seguinte, mude de cor e de traço; se quiser, mude até a forma como desenha o seu nome. Descubra a liberdade de se transformar e de fazer a sua própria história”.

Helio Rodrigues


segunda-feira, 6 de julho de 2009

IMAGINAÇÃO e VULNERABILIDADE

Observa-se especialmente em crianças de 2 a 6 anos, que elas realizam constantes exercícios de adequação entre as características essencialmente livres com as quais elas vêm ao mundo e as limitações impostas por esse mesmo mundo ao qual ele tenta fazer parte. Para facilitar essa adequação, a imaginação promove a fantasia que por sua vez se desenvolve como uma fonte de fortalecimento e apoio, para que possa ocorrer a acomodação desses opostos.
As crianças e jovens que atendemos no projeto, demonstram em sua grande maioria um notável comprometimento com esse período. Consequentemente também, apresentam sérias dificuldades com limites. Em geral, essas crianças são extremamente reduzidas dentro dos espaços possíveis de atuação, a ponto de não se reconhecerem competentes, ou vivem tão sem medida a ponto de não considerarem as fronteiras do respeito por sigo mesmas e pelo outro.
A violência e o desrespeito a que são submetidas desde bem pequenas, fazem com que elas priorizem atitudes de defesa contra o mesmo meio que as violenta e desrespeita. Experiências com o criativo, como: fantasiar, criar personagens, escutar estórias, são fundamentais para o desenvolvimento saudável de indivíduos em formação, no entanto, para essas crianças, essas experiências deixam de ser recursos de apoio para se transformarem em ações autofragilizadoras.
Ao se sentirem vulneráveis dentro deste universo permeado pela violência, elas se escudam com os mesmos mecanismos que as violentam constantemente.
O que pensar?
Talvez haja respostas ou ao menos material para se refletir sobre isso num outro universo: o universo daqueles que têm oportunidade de criar e viver fantasias que lhes permitam criar por exemplo, um amigo imaginário, uma "conversa" com bonecos, um rabisco na terra, ou um “mergulho” nos contos de fadas. Afinal, quantas fadas, quantas bruxas, quantas princesas e príncipes alguns têm a oportunidade de ser?
Praticar a imaginação é acessar o simbólico e dele fazer uso, para que, muitas vezes, as crianças possam dar conta de certas experiências vividas num mundo, nem sempre divertido ou fácil de aceitar.
Vamos agora imaginar a vida e o desenvolvimento de crianças que não podem exercer esse "transbordamento" de sentimentos e sensações que a imaginação oferece. Quantas questões, por vezes adversas, se somam e por isso se avolumam ao que essas crianças já têm que dar conta, simplesmente por estarem vivendo em condições tão difíceis e com limites tão indefinidos?
A maioria dessas crianças que atendemos no projeto,“pulou” essa fase em que a realidade deveria estar sendo saudavelmente tratada pela fantasia. Significa dizer que, dificuldades para lidarem com certas realidades ou até para poderem “falar” delas, poderiam "transbordar" através de ações criativas, caso tivessem acesso durante seu processo de desenvolvimento.
Resgatar essa fase e com ela apresentar recursos de expressão, parece ser nossa principal ação sócio-educacional. Mas na verdade, não é tão simples assim. É preciso pensar seriamente: Para qual realidade trazemos nossas crianças após o resgate?
Lidamos com esse paradoxo. Se por um lado a arte promove o encontro do indivíduo com aspectos essenciais que auxiliam na sua formação como pessoa, por outro, essa mesma aproximação, parece distanciá-lo da realidade de sua vida. Uma vida que se mantém instalada dentro de comunidades promotoras do embrutecimento.
Nas difíceis passagens do conhecido (no caso de nossas crianças, o meio embrutecido e subumano das favelas) para o desconhecido (a proposta de experimentar o autoconhecimento através da arte), carregam-se “amuletos” (recursos de apoio). Alguns se apegam no silêncio, outros na arrogância. Alguns discursam e se agarram em valores marginais, como se fossem náufragos. A verdade é que, qualquer indivíduo, quando se sente inseguro, dificilmente chega sozinho em áreas fora do próprio domínio. Há sempre um “amigo” ou um personagem para se apegar, mesmo que seja um bandido.
A cultura das comunidades que foram colocadas à margem da sociedade reconhecida, para não perderem sua identidade se fazem representar por seus “símbolos”; expressões, músicas, vestimentas, condutas, quase sempre conflitantes, quando estão presentes em outro meio social.

O que fazer?
Mais paradoxais se tornariam as ações dos orientadores atuantes no projeto, caso não fossem consideradas as possibilidades de colaboração dos próprios alunos através da cultura, da estética e conhecimento que lhes é próprio, mesmo que essa cultura pareça estar tão distante da cultura, estética ou conhecimento dos orientadores.
É preciso acolher a cultura que é trazida por essas crianças e jovens do projeto, afinal eles são parte dela e a ela se fundem para se identificarem como pessoas e poderem sobreviver. Sua não aceitação é o mesmo que negar a existência dessas crianças e jovens que atendemos. A não aceitação tenta eliminar as referências construídas por essas crianças e provoca a ruptura ou a não realização dos vínculos tão necessários entre orientador e aluno.
É preciso criar pontos de encontro entre essas duas culturas separadas por esse infeliz “apartheid” que foi criado ao longo de tantos anos e que produziu culturas conflitantes, assim como qualidades educacionais e oportunidades sociais sempre diferenciadas.
Mesmo sendo difícil para alguns orientadores, é fundamental compreender e aceitar os “símbolos” tantas vezes desagradáveis, trazidos por alguns alunos. Só assim é possível ajudá-los, na árdua missão que eles enfrentam quando ultrapassam a fronteira de suas comunidades em direção a valores tão contrários aos que os constituem.

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